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Quarentena e a recusa do isolamento

Eu relutei muito para escrever este texto, não raro me pegava jogando outros afazeres na frente e acabava atribuindo-os uma importância na qual aquele momento não requeria. Fato que, em uma leitura singela, eu me vi relutante e postergando uma discussão que suscitaria em mim sentimentos difíceis e ao mesmo tempo importantes.


A quarentena, ou melhor, o isolamento social estabelecido no Brasil, hoje, pela maioria dos estados e municípios (se não, todos) colocou abruptamente uma questão tão antiga na nossa sociedade para que possamos nos virar com o que temos. Essa amiga oculta, que mostra nossa verdadeira face do eu social no outro é como o antigo conto da bruxa que via sua imagem no espelho e a requisitava em sua verdade narcísica para que juntos pudessem gozar de sua alienação delirante. Tal alegoria, se levada às últimas consequências, é vista como a face do outro por nós: de um lado temos a pessoa que olha no espelho e o questiona e no espelho uma outra mesma pessoa que olha no espelho e o interroga.


A negação de um possível isolamento levanta um discurso que é legítimo, mas que está situado em um plano da qual não o cabe. Defender a economia, a prosperidade per capita (que sempre incide do abastado pelo desfavorecido), e tantos outros dilemas morais que estão em pauta, pode revelar apenas a recusa delirante da sua própria realidade. Não raro podemos ver pessoas que, em tentativa de ignorar os sinais que revelam a péssima relação conjugal, a falha metodológica da educação dos filhos, os sentimentos reservados a solidão do chuveiro que possui tempo contado de uma ducha, se voltam para a sociedade buscando reforçar e proteger as cordas que conduzem o personagem de marionete que propicia o esquecimento e afastamento temporário daquilo que é doloroso.


Injustificável, claro. Porém, compreensível. Ora, ilustrando um algo muito semelhante e mais ou menos compreendido por nós: o sexo. Toda relação seja ela qual for, com fetiches, jogos de domínio, sedução, controle e etc, sempre acontece em um nível extremamente solitário porque sempre gozamos sozinhos com os nossos próprios desejos. Não importando se esteja com dez outras pessoas em um quarto escuro, o que leva ao êxtase é sempre aquela parte de nós desconhecida que habita nosso íntimo e que de desconhecida pouco esconde a familiaridade da qual a recusamos. A moral da história é que sempre estamos sozinhos e as vezes essa solidão é apavorante, procuramos assim subterfúgios que amenizem a crua realidade da nossa solidão. Ressalvas devem ser mantidas, claro, pois não estamos num jogo de verdades. Mas, ainda assim, manteremos nosso caráter poético. Não se trata de defender a solidão, mas de torna-la uma amiga fiel e verdadeira dos nossos conflitos.


Em outras palavras, ficar em casa e lidar com o casamento fracassado, as dificuldades da criação dos filhos, os deveres domésticos (compartilhados pelos integrantes do espaço), com a solidão olhando no espelho e vendo alguém familiar e diferente em relação nossos conceitos megalomaníacos do Eu, é por demais difícil e penosa. É como se fossemos forçados a assumir nossa posição de sujeito responsável pela nossa vida e ter que contemplar possíveis erros – para quem o vê – que cometemos ao longo dos capítulos da vida.


Parafraseando uma célebre música, a vida é fascinante e deixa gente ignorante fascinada porque é muito fácil ir adiante e esquecer que a coisa toda está errada. E não é nem preciso recorrer aos livros de história para que possamos ver que criamos nossas próprias ilusões pessoais e, por que não, coletivas, porque a realidade sugere um medo que recusamos: somos um nada situados no tempo e no espaço com base na linguagem e cultura que nem mesmo por nós fora criada. Preferimos, então, a doce ilusão ante a dolorosa realidade da nossa própria insignificância.

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Sábado, 23 novembro 2024